domingo

RUAS

É assim mesmo, ocorre quando saio às ruas. Piso as teclas preto e brancas que soam algazarra de crianças. Olhos no chão, cuido livrar abismos. Penso coisas fedidas e molengas sobre a cidade. As instituições natimortas são modernas promessas não cumpridas.

No cimo da ladeira da Carrascosa, antes pouco da curva, um senhor fala sozinho, com panos e panos à venda, à sombra do Tiana. Ele magro, barba por fazer, branca, e olhos apertados. Parece cego, mas não aparece.

A cidade, a calçada e a sombra. Friinha. Um cheiro úmido de mata, um silêncio de gente. Uma esquina é a cidade inteira.

Caminho à rua da Graça onde os palacetes denunciam algo passado. Árvores nas calçadas. As raízes caudalosas fazem do passeio uma fita de Moebius. A terra, o avesso da cidade. A curva na moderna arquitetura imitou a topologia acidentada da natureza, de eras e heras concebida. Há uma objetividade acessível se a cidade em si desfolha o essencial.

Outra cidade, sem brios ou reputação; o anonimato. A verdade chega em trupe. O compartir amigo de imprecisões factíveis. Interpretações que se avizinham. Na linha do verso reescrever o que a notícia borra. Calçadas minadas de carros e fezes, e ainda regozija, salpicado, o cheiro de jaca. Topo a rosa vermelha despachada na garrafa de sidra. Aceno para o garotão levando a gaiola pra passear.

Nativos são defeitos in progress.

Por trás da franja do sonho, o lobo da objetividade quotidiana. Entre a nuca e o pescoço se alojam prestidigitações inconfessas. Reviver em memória quando, o fim, não mais puder andar.



POÉTIKA E POLÍTIKA

O mofo florando na carteira de couro, incólume sobre a mesa, inútil sobre a mesa. Decisões em tons negros. Mas se ela volta esqueço tudo. O escuro, um silêncio, o fundo do mar. Seus peitos: o fundo do mar. O silêncio no meio dos seus cabelos, no seio da tarde; o fundo do mar. Decompõem o impulso de terceiro mundo e a indignação, o nosso silêncio no seio da tarde. Mamando no seio da tarde. Se ela volta, meio tarde, rasgo literatura russa, arranco os dentes rangidos, toco a flauta vértebra. Se ela destampa no meio do nada, os peitos no fundo da tarde, eu ao mar. Homem ao cais, retornado ao seio do mundo.


SENTIMENTO OCEÂNICO


a Wagner Ferraz e Marçal Barreto,
amigos de jardins.




Vagando, cruzando carrinhos de tapioca, gente a trabalho, procuro apartamento para alugar. Conforme cruzo ruela ou avenida, escorrego sob camadas variáveis da cidade. Não há carros. Locomovo-me com patins implantados aos ossos dos pés, descarnados. Cachorros não cruzam as ruas, nem árvores soltam folhas. Salvo pés de Fícus ao modo de fachadas, obrigatório e intransferível, nada ameniza a tonalidade artificial, esmaecida, das platibandas. E bois, alguns bois, de mais a mais, transitam.

Deslizo distinguindo as feições do tempo. O casebre a óleo de baleia e água, feito castelo de areia, resiste. A torre vidro e granito, com minaretes polvilhados ao redor, é suspendida em ligas de metal e alumínio. Alguns predinhos antigos, três andares. Paro diante de um, encantador. A quê, das fissuras da fachada, precisamente dos recantos, uma criaturinha negra se insinua. Derrete para fora do edifício feito pasta. Uma perna, dois braços. Se assemelha a uma espécie de saci, encontrado ao norte do Peru.

Fade out.

As pernas tremulam. Tento abrir os olhos, sem força. A rua cheira cortume, misturado com cheiro de prenha parida. Apalpo-me e alcanço um lencinho de parteira que garroteia meus colhões. Estou envolto em sangue e suor, escorrido num chorume verde cinza. Quem passa me ignora. Os toc-tocs se aproximam e se vão. Talvez esteja numa calçada, ou numa praça.

Fade in.

Já posso enxergar. As bundas transeuntes caminham empinadas, com mulheres de cu trepado. Sapatos íngremes e dedos sobrando; vestem calça jeans com botão aberto aos culotes, transbordando. Maquiagem e suor, hidratante e protetor, derretem. Os peitos amassados e os pés espremidos, escorregando vazados pelos cantos das sandálias. Unhas encravadas e esmaltes descascando.

Fade out.

Percebo agora: não tenho membros. Salvo um. Não posso me locomover, tampouco sou visível. Renasci sob outra forma, guardadas as impressões remasterizadas de vida humana. Só pode. Ou então, como conto esse ponto em panorâmica sobrevida? Sinto cheiro de bolo. Na mesma direção uma porta abre e fecha constante. Haverá um nome para o meu caso? De um olho lacrimeja um sabor ocre, que me alcança a língua. Não tenho fome, ou qualquer necessidade. Quando almoçava à mesa de vidro, enquanto serviam, colocava o rosto na superfície rente ao fundo dos pratos, e espiava as felpas de poeira e as gotículas de água condensadas evaporando sob as travessas quentes. Tarkovski. Apreciava também os reflexos na contraluz rebatida das sancas brancas. Eram formas de ver. Ah, dissimulo beletrices! Na verdade, era uma forma de modificar o entorno, a mesa e os ânimos bem marcados da rotina. Os ângulos bem postos, o jogo americano. Uma obstinação infantil ver o outro lado e avessos quantos. Eu, que pertencia mais à raça dos anões, na fábrica de chocolate, agora esse saci traquino, realizando, por fim e por completo, a reversão do platonismo.

Fade in.

Do outro lado da rua há uma igreja que revejo. Talvez de uma história do Crumb, ou de uma HQ de Will Eisner. Por certo, posso lembrar, New York! É assim que gostaria de estar: um Lugar. De fábulas e fantasmas doutos. Nada de imperícias ou peripécias repetidas. Políticas, milícias, bandidos e outros vícios embutidos. Nada de cimos.

FIM.


A mercê da idade tudo foi simplicidade. Quando a casa era grama e terra; era o jardim da infância. Mais terreiro que alpendre, aquelas bandas. Cheiro úmido, miúdo, agridoce. Graminha, flor delicada e tanto, o caule; daqueles que balouçam ao menor ventinho. Cada libelo tecendo um tapete, rentes umas às outras. Ilhotas entre as pedras de cimento, quadradas e pesadas, formando um passeio para gente. Foi assim minha cidade. Concreto e jardim, Burle Max. A floresta e a escola. Lina Bo. Às vezes Cidade dos Sonhos.

COTIDIANO

Sabemos fingir. Brigar baixinho. No quarto, ninguém percebe. Aprendemos o jeito blasé nem fede, dos encontros de família. Agora somos. Confundimos todo e parte, meio e fim. Começamos em silêncio grave, ressoando dia a dia. Depois cortesia, pois não? Assim sucederam compromissos e cumprimentos. Cordiais que somos, sem brilho nem risco.

Do que não se escapa, o real. Fingir foi ganho. Em dia de feijoada, o chiado do feijão cheirando a casa, o povo feliz; e o emburro no mundo. Melhor pro porco. Sem pés e orelhas, sem esperança, sem medo.

As razões se confundem quando vamos à forra. A vida desanda. Feito ponto de doce. Derrama o leite, modorra o fogão.






CERIMÔNIAS

Havia certo pudor estacionar o carro defronte à casa, empalhando a vista de porta afora. A frente de casa tinha dono. Alguém estacionar? Se o dono consentisse, vá lá. Carro pedante, incapaz de compor respeito à casa, não merecia calçada de gente.



O PEQUENO BENJAMIN

Um varão de trás pra frente. Onipresente. Indefinível. E entanto, vibra. Vibra tudo. Aqui, dia e noite, ignora exaustão. Somos um bloco, uma equipe. Somos altivos. Somos muitos. Eu, você, e o pequeno Benjamin. Tudo tresmudado. Feito Heráclito diante do fogo: o elemento simples, desconcertante, divino.

Cheiro e zelo. O pequeno acorda geme geme. Grunhidos de corneta, compassados, atonais, e repetidos. Um coletivo de onomatopéias. Daí o choro. O semi-grito. A face desfigurada avermelhando. O corpo contorcido, espremendo. Até que pum, um jato quente e amarelo.


Benjamin, ` a luz prima. 

DIAS SINCEROS


a Lílian Canário


Dias sinceros são tristes. Ignoram sol e sombra.
Neles não há curvas, apenas um aclive tobogã
fazendo gozo de freira.

Os dias sinceros cevam fastio
com semblante plástico inerte. Na presença do incômodo um gesto de eficácia;
são assim,
dias sinceros e mortes pressentidas.
Com uma ilusão no meio.

Dias sinceros são atemporais, perdem-se as horas de relógio em sua passagem.
Azuis, marrons ou amarelos,
são poucos, mas variados,
os dias sinceros.

Borra de café, vinho avinagrado –
acre e doce, os dias sinceros.
Dias de pouca palavra,
muita nódoa
e flores no jarro.



É do capitão que elas gostam mais

É domingo à noite. O jardim de um fino restaurante, bairro nobre, cercado de papoulas e acácias, muro baixo. Uma casa modernista, portas brancas de madeira e vidro, ladeada de espigões sem boleios. No interno da casa ambiente climatizado. Cortinas, decoração à italiana, frios diversos pendurados à delicatessen, cordas, panos vermelhos e verdes, madeira escura. Quadros retrô, cartazes de filmes; o vermelho, o branco e o verde. À minha frente, cinco mulheres fumantes, todas mais de 37, sem homens. Uma delas deputada conhecida do povo. Um oito anos sobre a mesa. Algumas rodadas de sushi, gestos largos e despreocupados, conversa solta. Uma ilha.

Ao lado, uma mesa comprida repleta de casais. Em separado, uma menina e sua babá não incomodam a efusividade esganiçada do encontro. Um oito anos, carteiras de cigarro sortidas, smartphones e grandes chaveiros alarme. Não há como evitar os vozeirões e a gorda algazarra, no jardim da casa de arquitetura modernista plenamente conservada. Em miudinho, contraponto às grossas vozes, as mulheres, na outra banda da mesa, uma ao lado da outra, tricotam com agulhas de vidro. Aqui acolá alguma gaitada se desprende e ressoa na arquitetura de concreto à mostra.

Saboreio Insalata con Pasta.

Uma mulher sozinha, na mesa dos casais, atende o celular. Roberto, passei o dia em casa, só saí pra fazer a feira, diz. Vim com a Roberta e o Luis Cláudio, depois eles me deixam em casa. Mas você não quis vir! É incrível uma coisa dessas, é incrível! Eu te perguntei se você ia andar, e você disse que não! Você ligou pra me esculhambar? Eu tenho a chave... Se eu não conseguir entrar vou dormir na mamãe. A mulher se volta à mesa, toma um gole de água-com-gás, e retoma ao telefone. Mãe, talvez eu vá dormir aí, viu? É, pois é, mas quando chegar a gente conversa. Nada transparece aos amigos, distraídos. Eu é que não volto mais pra casa. Ele nunca sai comigo, e não quer que eu saia? Absurdo uma coisa dessas!

Mastigo pepinos fresquinhos com cenouras e pimentões amarelos e vermelhos mergulhados numa taça com água e gelo e uma pitada de sal. À tarde estive com mulheres do Bolsa Família. Uma dizia: Ele gostava de me dar namorado. E toda vez que chegava ia me enchendo de nomes; cada nome desse tamanho! Paciência, tem os filhos; às vezes o filho é apegado ao pai, a gente aguenta. Mas no dia em que me bateu, saí de casa.

Fecha parênteses, a deputada. Uma enquete, uma enquete: vocês preferem o capitão do BOPE ou o Chico Buarque? Em termos de libido, o capitão do BOPE ou Chico Buarque? Hein?! No pescoço, a empolgação das cordas vocais. Uma confessa: Chico Buarque.


A deputada, um tipão, minutos depois retorna do toalete, cambaleando aos braços com a amiga. Ringindo o salto no mármore, antes de chegar à mesa, berra: Capitão Nascimento, meu deus, ô homi lindo!

terça-feira

O TIPO NOVO-MÉDICO

No Brasil somos todos vagabundos, no mínimo preguiçosos. Ao menos é o que parece pensar o tipo novo-médico. Em geral são jovens, recém-saídos da universidade, abrigados em clínicas em que o catedrático da medicina emprestou nome e sobrenome (e assim herdam toda uma confiança angariada décadas a fio, grão a grão, junto ao capital necessário ao negócio, claro). E então o jovem pretendido a doutor, bigode que não passa de buço, ainda graduando, ali faz residência e será, bem provável, dali que suará ganha pão nos primeiros anos de profissão. Então o sujeito, pinto ainda, mal saído do ovo, com aquele jalecão exibindo o nomão (como também se lê a patente na farda do soldado), escrito a cursiva, cobrindo a cafonice da calça jeans fundo baixo e o sapato social surrado, ao tempo em que denuncia sua deselegância (tanto pior pois inocente), suspira um ar de comandante de boeing, do alto de sua blasérice, ora pois, obtusa.

O sujeito pode estar suando frio, derramando coriza pelos ouvidos, e o exame será o mesmo, e as drogas idem: um soro jet para as narinas, um antiinflamatório a base de corticoide, e dez dias de antibiótico (pois agora sete não são mais suficiente). Então não é primeira, nem será última, vou ao consultório médico, sofrendo vinte e quatro horas de febre e prostração... E tendo que solicitar justificativa para dispensa na faculdade, pois não me aguentei, a manhã em pé falando na aula, o rapaz me dá um dia: afinal, três comprimidos e estarei pronto para o retorno, ao trabalho. Não bastasse o constrangimento de pedir penico a outro homem, que deveria saber do desamparo que nos constitui desde o útero, leio sua delação atestada em texto padrão:

Atesto, à pedido, que o paciente acima foi atendido(a) em nossa clínica no dia 23 de fevereiro de 2015. Em virtude dos problemas de saúde que apresentou, necessita ausentar-se das suas atividades profissionais, guardando o necessário repouso, pelo período de 01 (um) dia a partir de hoje”.

Quer dizer, reconhece que o paciente precisa se ausentar, mas só o atesta “à pedido”. O novo-médico é o funcionário modelo da empresa, de uma empresa abstrata e total, que impregna nossas vidas modernosas e nossas relações, como se coisas administráveis fossem. Sequer um apalpo. Sequer uma anamnese interessante, um clima para fluir a história de vida, uma escuta sensível. É identificar sintoma, utilizar instrumentos e receita. Alívio imediato? Fazemos qualquer negócio.


Ao que tudo indica, atestado médico virou carta de alforria, e não será qualquer jovem senhor(a) de engenho pretendido(a) a ßdoutor(a) a se dispor distribuir privilégio de ócio a nego fugido.