domingo

SENTIMENTO OCEÂNICO


a Wagner Ferraz e Marçal Barreto,
amigos de jardins.




Vagando, cruzando carrinhos de tapioca, gente a trabalho, procuro apartamento para alugar. Conforme cruzo ruela ou avenida, escorrego sob camadas variáveis da cidade. Não há carros. Locomovo-me com patins implantados aos ossos dos pés, descarnados. Cachorros não cruzam as ruas, nem árvores soltam folhas. Salvo pés de Fícus ao modo de fachadas, obrigatório e intransferível, nada ameniza a tonalidade artificial, esmaecida, das platibandas. E bois, alguns bois, de mais a mais, transitam.

Deslizo distinguindo as feições do tempo. O casebre a óleo de baleia e água, feito castelo de areia, resiste. A torre vidro e granito, com minaretes polvilhados ao redor, é suspendida em ligas de metal e alumínio. Alguns predinhos antigos, três andares. Paro diante de um, encantador. A quê, das fissuras da fachada, precisamente dos recantos, uma criaturinha negra se insinua. Derrete para fora do edifício feito pasta. Uma perna, dois braços. Se assemelha a uma espécie de saci, encontrado ao norte do Peru.

Fade out.

As pernas tremulam. Tento abrir os olhos, sem força. A rua cheira cortume, misturado com cheiro de prenha parida. Apalpo-me e alcanço um lencinho de parteira que garroteia meus colhões. Estou envolto em sangue e suor, escorrido num chorume verde cinza. Quem passa me ignora. Os toc-tocs se aproximam e se vão. Talvez esteja numa calçada, ou numa praça.

Fade in.

Já posso enxergar. As bundas transeuntes caminham empinadas, com mulheres de cu trepado. Sapatos íngremes e dedos sobrando; vestem calça jeans com botão aberto aos culotes, transbordando. Maquiagem e suor, hidratante e protetor, derretem. Os peitos amassados e os pés espremidos, escorregando vazados pelos cantos das sandálias. Unhas encravadas e esmaltes descascando.

Fade out.

Percebo agora: não tenho membros. Salvo um. Não posso me locomover, tampouco sou visível. Renasci sob outra forma, guardadas as impressões remasterizadas de vida humana. Só pode. Ou então, como conto esse ponto em panorâmica sobrevida? Sinto cheiro de bolo. Na mesma direção uma porta abre e fecha constante. Haverá um nome para o meu caso? De um olho lacrimeja um sabor ocre, que me alcança a língua. Não tenho fome, ou qualquer necessidade. Quando almoçava à mesa de vidro, enquanto serviam, colocava o rosto na superfície rente ao fundo dos pratos, e espiava as felpas de poeira e as gotículas de água condensadas evaporando sob as travessas quentes. Tarkovski. Apreciava também os reflexos na contraluz rebatida das sancas brancas. Eram formas de ver. Ah, dissimulo beletrices! Na verdade, era uma forma de modificar o entorno, a mesa e os ânimos bem marcados da rotina. Os ângulos bem postos, o jogo americano. Uma obstinação infantil ver o outro lado e avessos quantos. Eu, que pertencia mais à raça dos anões, na fábrica de chocolate, agora esse saci traquino, realizando, por fim e por completo, a reversão do platonismo.

Fade in.

Do outro lado da rua há uma igreja que revejo. Talvez de uma história do Crumb, ou de uma HQ de Will Eisner. Por certo, posso lembrar, New York! É assim que gostaria de estar: um Lugar. De fábulas e fantasmas doutos. Nada de imperícias ou peripécias repetidas. Políticas, milícias, bandidos e outros vícios embutidos. Nada de cimos.

FIM.


A mercê da idade tudo foi simplicidade. Quando a casa era grama e terra; era o jardim da infância. Mais terreiro que alpendre, aquelas bandas. Cheiro úmido, miúdo, agridoce. Graminha, flor delicada e tanto, o caule; daqueles que balouçam ao menor ventinho. Cada libelo tecendo um tapete, rentes umas às outras. Ilhotas entre as pedras de cimento, quadradas e pesadas, formando um passeio para gente. Foi assim minha cidade. Concreto e jardim, Burle Max. A floresta e a escola. Lina Bo. Às vezes Cidade dos Sonhos.